orumbá é porta de entrada de haitianos. Mas de lá eles não conseguem sair

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Desde o terremoto que em 2010 avassalou Porto Príncipe, a capital do Haiti, o Chile tornou-se um dos destinos de acolhimento de refugiados daquele país. Mas, quando o presidente chileno Sebastián Piñera efetuou mudanças nas políticas migratórias, percebidas com mais intensidade entre o fim de 2017 e início de 2018, haitianos têm se deparado com imensa dificuldade para encontrar trabalho em território chileno. Com isso, o fenômeno de uma nova diáspora em busca de sobrevivência tornou Corumbá a nova rota de entrada de imigrantes haitianos no Brasil.

Haitianos vindos do Chile chegam ao Brasil por recomendação de compatriotas, boa parte composta por familiares, com visto humanitário no Brasil. Segundo eles, é maior a chance de obter trabalho no país, que ocorre principalmente no ramo da construção civil. Além disso, o fato de existirem familiares – muitos deles residentes desde 2011 – acaba por lhes proporcionar maior sensação de segurança. Os principais destinos são Santa Catarina, São Paulo e Paraná.

O detalhe, porém, é que de Corumbá eles não têm como sair. O acolhimento de refugiados depende de visto humanitário concedido em Porto Príncipe. Assim, haitianos que chegam por Corumbá são considerados ilegais, e recebem notificação de 60 dias para saída do país.

Desde que a Polícia Federal diminuiu o número de notificações, que por bem ou mal, permitem aos imigrantes circularem pelo país, haitianos estão se amontoando na rodoviária da Cidade Branca. De dia, perambulam pela cidade. À noite, procuram abrigo no prédio ou com quem se sensibiliza e concede pouso. A situação desperta a compaixão dos corumbaenses. E medo na administração pública.

Conforme levantamento da Secretaria de Assistência Social de Corumbá, atualmente são ao menos 300 haitianos na cidade, divididos entre hotéis baratos, pousadas, garagens, instalações municipais, salões paroquiais, casas de família e na rodoviária. O número é muito maior que o suportado pela estrutura da cidade, cuja Casa de Passagem tem capacidade de abrigar apenas 20 pessoas por noite, por no máximo cinco dias seguidos, conforme o regimento municipal.

(Foto: Marcos Ermínio | Midiamax)

O engessamento das notificações parece ser o principal responsável pela permanência deles na cidade. O número crescente de haitianos também oculta diversos contextos, não só o diaspórico, mas também as condições de travessia. Do Chile, imigrantes pagam coiotes, muitas vezes taxistas, para transportá-los pela Bolívia até a fronteira com o Brasil.

A Bolívia não possui programa de acolhimento de refugiados, como aqui, mas é por lá que haitianos vencem mais de 2 mil km, em viagem que chega a durar três dias, até Porto Quijarro, cidade fronteiriça distante no máximo 30 min de Corumbá. Com medo de prejudicar outras pessoas em processo de vinda ao Brasil, haitianos evitam ao máximo detalhar essas condições a autoridades e à imprensa.

Todavia, os relatos chegam, de uma forma ou de outra. De acordo com membros do Comitê Estadual de Enfrentamento de Tráfico de Pessoas em Mato Grosso do Sul, haitianos são submetidos a todo tipo de abuso: sair do Chile rumo ao Brasil é uma via crucis marcada por violência, xenofobia, extorsão, roubos e até por abusos sexuais. Chegam na fronteira sem dificuldade de entrada, já que veículos bolivianos atravessam o posto de imigração sem problemas até Corumbá. São despejados, literalmente, em frente a rodoviária. A pior parte da travessia foi vencida, mas as dificuldades estão longe de ter fim.

Travessia

En Chile no hay trabajo, no hay nada… Y tengo mucho frío”, explica, em espanhol, o haitiano Wenddy Joseph, de 19 anos. Em 2017, ele saiu de Porto Príncipe para Santiago, no Chile, chegou pouco antes do rigoroso inverno. Permaneceu na cidade por cerca de um ano, onde trabalhou como pedreiro. Quando o serviço chegou ao fim e seu visto de turista – com o qual ficaria indefinidamente no país, conforme a política de imigração praticada no governo da ex-presidente Michelle Bachelet – passou a considerá-lo ilegal. Vir para o Brasil foi a solução encontrada. Está no país desde o início do mês e o destino final é Chapecó, em Santa Catarina, onde dois irmãos moram e também trabalham com construção civil.

Um dos poucos que atendeu a reportagem em espanhol, Wenddy age como outros haitianos e é hesitante quando perguntado sobre a travessia. Fornece informações vagas, omite fatos e muda o idioma, recorrendo ao crioulo haitiano, sua língua nativa. Força a incompreensão. Não há um dicionário português-crioulo. A decisão de não explicitar abusos da viagem que dura até três dias – num percurso de mais de 2 mil km a partir, geralmente, de São Pedro do Atacama – é motivado provavelmente pelo receio de prejudicar a vinda de haitianos ainda no Chile.

(Foto: Marcos Ermínio | Midiamax)

A estimativa da Secretaria de Assistência Social de Corumbá é que dos cerca de 100 mil imigrantes haitianos que moravam no Chile, cerca de 1.300, pelo menos, já tenham passado pela cidade sul-mato-grossense em 2018, chegando por Porto Quijarro e Porto Soares. Números da Polícia Federal revelam que na cidade 931 haitianos deram entrada no posto de imigração, de 1º de janeiro de 2018 até o dia 2 de julho. Em poder do padre Marco Antônio Ribeiro, representante da Missão Scalabriniana de Fronteira, cópias de documentos que são organizados e entregues na imigração mostram passaportes sem carimbo de saída do Chile e nenhum registro de passagem pela Bolívia.

“Como todo fluxo migratório, entre a origem e o destino há a passagem. E por serem passagem, esses países raramente impõe obstáculos, principalmente no nosso continente. Sair do Chile para chegar ao Brasil provavelmente fosse mais fácil em linha reta, passando pela Argentina e o Paraguai. Mas, a Argentina é um país de destino, que não facilitaria a passagem. Por isso eles passam pela Bolívia”, explica o professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) Marco Aurélio Machado de Oliveira.

Todo haitiano tiene que pasar por la Bolivia para llegar a Brasil”, diz Wenddy, sem mais detalhes. Mas, relatos fornecidos a uma comissão do Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que contou com um haitiano residente em Campo Grande e que fala português, confirmam a travessia violenta.

(Foto: Marcos Ermínio | Midiamax)

Roubos, extorsões, violência física e sexual são comuns. Atravessadores aproveitam-se da vulnerabilidade dos imigrantes, cobram taxas que podem chegar a US$ 500 ou mais. Durante o caminho, param em estradas ermas, apoderam-se, com uso de força e agressão, de bens como documentos, máquinas fotográficas e telefones celulares. Mulheres são abusadas e estupradas. O silêncio ante a possibilidade de denunciar violações evidencia profunda resignação e submissão aos abusos possíveis da travessia.

Provavelmente, haitianos estão cientes dos riscos aos quais estarão expostos. Com celulares nas mãos, eles passam o dia em comunicação numa espécie de rede, por mensagens de textos ou por envio de arquivos de áudio. Acessam a internet, assistem a vídeos no Youtube. Traduzem as informações locais conforme a língua nativa e conseguem, se quiserem, deslocar-se a endereços e acessar serviços como hospitais e supermercados. Conversam com amigos e familiares, trocam informações, relatam os problemas de notificação no posto de imigração da Polícia Federal. Não restam dúvidas de que há um circuito minimamente organizado.

“Essas pessoas não fazem uso e abuso de drogas ilegais, não há óbitos registrados em Corumbá, não há uma mulher grávida que tenha abortado. Não há uma tragédia, ainda, que ainda não ocorreu não porque as autoridades evitaram, mas porque há um mínimo de organização da rede deles”, detalha Oliveira, que também é coordenador no Circuito de Apoio ao Imigrante.

Para Oliveira, também há outros aspectos que promovem certa estabilidade ao fluxo migratório, como a forte presença de mulheres entre os haitianos. “Onde há fortes presenças femininas, há menos incidência de violência, de uso e abuso de drogas ilegais, de venda de filhos e de tráfico de pessoas. Acredito que esse seja um dos elementos que evita que tragédias aconteçam. Também estou convencido de que onde há elos familiares no transcurso do fluxo, os riscos são mais calculados por eles”, destaca o pesquisador.

Braços abertos

Por volta das 6h da manhã, o padre Marco Antônio Ribeiro levanta da cama. São cerca de seis horas de descanso que separam o término e início de uma rotina 100% dedicada ao amparo de imigrantes haitianos. Ele se divide entre atividades mais frugais, como transportar utensílios de cozinha para o preparo da refeição que oferecem, até a leva-los a hospitais e agendar atendimento na imigração. Recebe, das mãos dos haitianos, cópias do passaporte e de outros documentos, que são apresentados na Polícia Federal. A lista com os agendamentos é fixada nos locais onde eles passam a noite, como pensões, hotéis, garagens, sede da pastoral e outros espaços.

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